A Convenção de Minamata sobre Mercúrio entrou em vigor em 16 de agosto de 2017 assinalando um marco histórico para a proteção do meio ambiente e da saúde humana e iniciando grandes mudanças positivas no comportamento da indústria e dos consumidores em muitos setores.
Das várias questões tratadas na Convenção, sem dúvida a de maior impacto global é a mineração artesanal e de pequena escala de ouro que, ao mesmo tempo que é considerada como a maior fonte antropogênica de emissões e liberações de mercúrio e seus compostos para o meio ambiente, é o meio de vida de 10 a 15 milhões de mineradores e suas famílias, sendo responsável pelo sustento de cerca de 75 milhões de pessoas no mundo todo, mas principalmente nas regiões mais pobres.
Nesta ocasião, a equipe do Projeto Ouro Sem Mercúrio compartilha as experiências e sonhos de mineradores que sofrem com os efeitos do uso do mercúrio — tanto os conhecidos danos diretos à saúde dos trabalhadores, quanto os estigmas causados pelos danos ambientais do mercúrio — e que apenas desejam uma alternativa que lhes de condições de trabalhar de forma segura e dentro da lei.
Uma população tradicional que vive da extração de ouro no seio da Amazônia
No coração do Amapá, uma região rica em recursos minerais em plena região amazônica brasileira, encontramos uma comunidade de garimpeiros que há gerações têm dependido da mineração para sobreviver. Trata-se do Garimpo do Lourenço, no Município de Calçoene, no qual a extração de ouro ocorre há mais de 130 anos.
O Distrito de Lourenço possui mais de 7.000 moradores, concentrando a maioria dos cerca de 11.500 habitantes do Município de Calçoene. Todo o distrito depende exclusivamente da extração de ouro e mais de 1.500 pessoas trabalham diretamente no garimpo, muitos de forma precária.
Apesar de garantir a subsistência das famílias, a atividade também traz desafios significativos relacionados ao amplo uso do mercúrio, o que é reconhecido pelos trabalhadores que desejam a mudança, mas não conseguem vislumbrá-la sozinhos.
Riscos do mercúrio são conhecidos e sentidos na pele
Morro da mina Salamangone é um lugar emblemático para garimpeiros do Lourenço.
As histórias de vida dos garimpeiros que encontramos nas visitas de campo têm muitos aspectos em comum. Um deles é o mercúrio. José* e Ricardo* (nomes fictícios), por exemplo, são dois garimpeiros que viveram o garimpo como um negócio de família e passaram a maior parte da vida profissional vinculados à atividade. Hoje com mais de 60 anos, os dois compartilham a preocupação e um reconhecimento dos riscos associados ao uso de mercúrio no processo de extração de ouro.
Ao falar sobre o tema, Ricardo já começa enfatizando: “queria que alguém encontrasse algo que substituísse o mercúrio. Seria muito bem-vindo, o garimpeiro iria só agradecer”.
José já sentiu na pele os efeitos nocivos do mercúrio quando adoeceu por causa de contaminação com o metal. “Tinha uma época que as pessoas achavam que não era nada” conta ele, relembrando que o uso do metal na atividade garimpeira é uma tradição histórica. Sobre seu problema de saúde, detalha que o metal atingiu todos os seus órgãos: “eu tinha fraqueza, dor de cabeça, é cruel, é muito cruel. Fiz vários exames, o médico me falou que era mercúrio. Aí passei a me cuidar. Agora trato o mercúrio com o máximo de cuidado e não tive mais problema. E eu oriento todas as pessoas para evitar ao máximo o uso do mercúrio”, nos conta.
Apesar de reconhecerem os danos pessoais e ambientais, segundo Ricardo, para os garimpeiros a “única maneira de separar o ouro hoje, é com o mercúrio. Então, se não tiver uma outra solução, o mercúrio nunca vai acabar. Se tiver outro material que possa substituir, vai ajudar muito e é muito bem-vindo e bem aceito”, afirma.
Diante de tudo que passou com o metal, José define a possibilidade de uma nova tecnologia que elimine o seu uso no dia a dia: “É um sonho. É uma coisa que eu sonho é ter um equipamento que faz uma recuperação cem por cento sem o uso de mercúrio. Para nós seria excelente”.
Garimpeiros pedem apoio técnico para superar o problema do mercúrio
A realidade vivida por José e Ricardo, também é compartilhada por Franscisco*. “Se existe algo melhor do que o mercúrio, para que possamos trabalhar com o nosso minério, o nosso ouro, nós aceitamos. Venham e tragam opções melhores, porque a nossa saúde, ela, está em jogo” — é assim que ele começa a nossa conversa logo após a oficina realizada pelo projeto Ouro Sem Mercúrio em Lourenço para discutir o futuro da atividade.
Minha mensagem hoje para o mundo é o que vocês puderem fazer, o mais rápido possível, para ter uma solução para o garimpeiro sobreviver mais e evitar estar doente com o mercúrio, que vocês nos ajudem. Francisco, Garimpeiro Distrito de Lourenço – Amapá
Francisco ressalta que a saúde dos garimpeiros está em risco devido à exposição ao mercúrio e pede apoio da comunidade global por meio de novas tecnologias que possam efetivamente ser implementadas pelos trabalhadores. Ele conta que vários amigos já adoeceram devido ao uso do mercúrio, e por isso considera muito importante encontrar soluções sustentáveis para permitir que a tradição garimpeira continue, mas de forma segura e saudável. “Já que existe uma solução para evitar o mercúrio, vamos evitar” reflete, afirmando que enquanto a solução não chega “a gente vai ter que procurar trabalhar com muito cuidado”.
Mercúrio e esquecimento são velhos companheiros de jornada
Ricardo também nos conta que o outro grande problema dos garimpeiros é a falta de ações governamentais efetivas para que a pequena mineração possa atuar dentro da legalidade e com responsabilidade social e ambiental. Ele explica que os garimpeiros reconhecem a importância do meio ambiente para suas vidas e que “ninguém quer acabar com a natureza, ninguém quer acabar com nada, porque nós respiramos, nós bebemos a água… a natureza é vida e nós precisamos dela”.
“Nós geramos renda, geramos empregos. Eu sou um pequeno garimpeiro e tenho 10 pessoas trabalhando comigo, cada uma com 4 ou 5 filhos que dependem do resultado dessa atividade. Então o que nós precisamos é de políticas sérias, que orientem, que digam qual a área que vai ser explorada, como vai ser reflorestada, com base em projetos”, defende Ricardo.
Refletindo sobre o futuro, ele afirma que “se depender de ajuda minha, vamos encontrar maneiras de melhorar. Só temos que buscar maneiras de ter apoio do governo, das prefeituras, das cooperativas. Tem dias que o garimpeiro não tem dinheiro para comer, mas ele está ‘correndo atrás’, está batalhando”, relata. “Se eu parar o garimpo, eu vou fazer o que? Eu larguei tudo e foquei só em garimpo… Então o que nos falta é política pública”, conclui.
Garimpo, natureza e o futuro
Para José, todo o garimpeiro tem condições de fazer uma exploração de ouro responsável. “Acho importante que os órgãos nos deem condições, mas nós temos uma responsabilidade com a natureza, com cuidar do meio ambiente. Isso é muito importante. Eu não sou um ambientalista, mas eu gosto de preservar a natureza”, pontua.
O conselho deixado por José, com seus mais de 40 anos de garimpo, é o compromisso de recuperar as áreas degradadas pela atividade: “temos que ter respeito com o meio ambiente, pensar no futuro, nas nossas crianças, na próxima geração que vai chegar e ver só destruição. Nós temos condição sim de fazer tudo isso [a extração de ouro] com responsabilidade ambiental”.
Governo brasileiro dá primeiro passo para realizar o sonho de um garimpo sem poluição por mercúrio
Por meio do projeto Ouro Sem Mercúrio, o governo brasileiro busca atender ao seu compromisso com a Convenção de Minamata. Este projeto, lançado em 2022 e programado até 2025, oferecerá subsídios para a elaboração do Plano de Ação Nacional “Ouro Sem Mercúrio”. Pesquisadores estão realizando visitas a garimpos legalizados em toda a região amazônica e conduzindo entrevistas com garimpeiros, organizações da sociedade civil, profissionais de saúde e outros envolvidos no setor, com o propósito de construir uma análise sólida dessa atividade.
A entrega do Plano brasileiro à Convenção de Minamata está prevista para o primeiro semestre de 2025. Este é um passo significativo rumo a um futuro em que a extração do ouro possa coexistir de forma sustentável com a preservação ambiental e a saúde humana, respeitando as vozes e os anseios dos trabalhadores que vivenciam essa realidade diariamente.